terça-feira, julho 31, 2007

Colhendo morangos silvestres


Descobrir o cinema de Ingmar Bergman é educar os sentidos para uma experiência nova e edificante, é abrir os olhos para um cinema onde a recriação da vida se cristaliza, os personagens têm carne e osso, epiderme e coração, alma e substância, fraquezas e qualidades.
Colocar um filme de Bergman no prato do DVD é uma decisão corajosa. Nos próximos aproximadamente 120 minutos vou aprender como se faz cinema sério e sem apelações. Vou tirar um tempo para conhecer até onde a sétima arte pode chegar em termos de qualidade de roteiro, direção, interpretação e simplicidade.
Vou deixar de lado a pipoca e me concentrar em cada frase, cada movimento de câmera, cada nuance de luz; cada circunstância, cada dilema, cada momento dramático e especial.
Vou esquecer que o cinema americano enlatado existe. Vou mandar ao diabo as explosões, os tiroteios sem nexo, as caricaturas, as piadas forçadas, as perseguições. Vou desopilar meus neurônios, vou rejuvenescer meus axônios, vou abrir a cachola e deixar o cérebro arejar, pegar um sol, se livrar dos ácaros e do mofo.
Vou aprender a ser cinéfilo de verdade.
Assisti a Morangos Silvestres ontem.
Morangos, quem não colou em botânica deve lembrar, são frutos compostos, ou seja, cada polpa saborosa e perfumada tem inúmeros e minúsculos frutos incrustados em sua volta. Da mesma forma, cada personagem de Bergman é multifacetado, é tridimensional, não cabe em análises lineares e superficiais.
A empregada do professor Borg, por exemplo. É uma personagem tão real, é um papel tão verídico que nem pode ser chamado de coadjuvante. Pois sem sua fiel escudeira, o professor Borg não conseguiria chegar a lugar nenhum.
Muito menos, arrumar a mala para uma viagem à cidade onde lecionou, onde será homenageado com um título honorífico. O espectador fica ciente da auto-ironia do professor Borg (Victor Sjolstrom) quando este diz de si para si merecer, na verdade, o título de idiota honorífico.
"Morangos Silvestres" (1957) conta este dia da vida do Prof. Borg, não um dia comum: o dia em que ele viaja para receber o tal título. De cara, já muda os planos. Em vez de avião, decide ir de carro, para a surpresa da empregada.
E, como Bergman costuma fazer, surpreende o espectador ao introduzir personagens inesperados. Quem imaginaria que na casa do professor rabugento e sua empregada, estaria hospedada a nora Marianne (Ingrid Thulin, o suprassumo da perfeição sueca), que na última hora pede para ir junto?
Enquanto é tempo: não pense o leitor que "Morangos Silvestres" é um "filme-cabeça", um daqueles filmes chatos e arrastados, inócuos e intelectuais. "Morangos Silvestres" é antes de tudo isso: um road movie.
Se eu entendesse de carros poderia dizer que carro é o do Prof. Borg, mas ficamos assim: é um enorme carro preto, que, como os fatos irão demonstrar, é capaz de transportar até sete pessoas com facilidade.
Durante a viagem, Borg pára em um local conhecido e revisita o canteiro de morangos silvestres. O cheiro dos frutos revive memórias de sua juventude. E o filme vai contando um pouco da vida passada do professor, ao mesmo tempo em que são inseridos novos personagens, que parecem vir do passado, na forma de Sara, uma loirinha sapeca que pede carona ao professor.
Entre os novos passageiros surgem o noivo de Sara, e outro rapaz, também apaixonado por ela. O noivo quer ser pastor, toca violão e acredita em Deus. O acólito é um agnóstico; para ele, o homem moderno deve acreditar em si e na morte biológica. Com essa dualidade em forma de gente, Bergman vai acrescentando elementos que ajudam o professor Borg neste balanço de sua vida.
A viagem de Borg irá incluir um bizarro acidente; uma visita à sua mãe, mulher idosa, porém ativa; uma parada no posto de gasolina cujo dono é Max von Sidow; uma conversa franca com a nora; onde esta vai revelar detalhes do relacionamento conturbado com o filho de Borg, e inúmeros fragmentos de sonhos que perseguem o professor.
O cinema de Bergman é o típico cinema de autor, com personalidade e estilo marcantes. Um cinema que influenciou muitos dos melhores cineastas das gerações seguintes. Influência não só no cinema. Clarice Lispector, por exemplo, era fissurada em Ingmar Bergman.
Morangos como esses não se encontram nos supermercados e nas hortas. Não têm apelo fácil. Não vêm empacotados e plastificados, rotulados e carimbados. É preciso se aventurar, arriscar, caminhar no campo à sua procura. É preciso aprender o lugar e a época certos para encontrá-los. Sua aparência não será a de morangos adubados, pulverizados e selecionados. São frutos que cresceram livremente, aproveitando a fecundidade natural do solo, frutos de forma e tamanho desuniformes, porém puros.
(Texto escrito em setembro de 2002).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é bem-vindo!