quinta-feira, outubro 15, 2009

Bastardos inglórios

Com exceção de uma sequência (a protagonizada por Mike Myers), Bastardos inglórios é impecável. A cena de Myers não convence porque fica indecisa entre o esculacho e a verossimilhança interna. Tipo de cena que destoa e pode ser sacada com ganhos.
No mais, os capítulos do novo filme de Quentin Tarantino são repletos de suspense e humor na medida certa. O charmoso e ao mesmo tempo tenebroso cenário é a França controlada pelos nazistas, retratados no capítulo 1 como manipuladores, asquerosos, racistas e antissemitas. O coronel Hans Landa (Christoph Waltz), um dos personagens mais nojentos da história do cinema, visita a residência de um produtor de leite à procura da família Dreyfus, que estaria refugiada na propriedade. A sequência toda é um primor e já vale o filme, com uma cena homenageando o filme Rastros de ódio (The searchers), de John Ford. O capítulo 1 introduz além de Landa outra personagem essencial da história: a selvagem Shosanna Dreyfus (Mélanie Laurent, na foto).

Para contrabalançar a violência nazista, a América envia um micropelotão comandado pelo tenente Aldo Raine (Brad Pitt) com o único objetivo de instalar o terror nas hostes alemãs por conta de barbáries como tirar o escalpo dos inimigos mortos e marcar a suástica na testa dos vivos. Logo a fama dos "Inglourious basterds" se espalha e alguns de seus integrantes ganham alcunhas sugestivas como o sargento Donnie Donowitz (Eli Roth), que passa a ser conhecido como o "Urso Judeu" e o tenente Aldo como "Apache". O sargento Donnie ganha fama por destroçar prisioneiros indefesos com um taco de beisebol em espetáculos dantescos.

Os desdobramentos e episódios seguem a estrutura tarantiniana de diálogos cortantes e inusitados com suspense crescente que acabam em múltiplos ápices banhados de sangue, suor e lágrimas. A selvageria dos dois lados é enfatizada sem firulas. Não há mocinhos nem bandidos, apenas pessoas sem moral ou vingativas. Vingança fenomenal é a planejada por Shosanna, agora morando em Paris e proprietária de um cinema. Com a ajuda do amante Marcel (Jacky Ido) ela vai provar que a vingança é um prato que se come frio.

Ser impecável não significa ser ótimo ou genial, mas fato inegável é a rapidez com que os 210 minutos frenéticos se escoam. As duas horas e meia passam num piscar de olhos, e isso é sinal de que o filme é pelo menos bom. É bem verdade, Tarantino não usa o cinema para denunciar nem para provocar profundas meditações. Realiza uma espécie de entretenimento com conteúdo estético e texto apurado. Num século em que o cinema e a literatura se banalizaram, um diretor como Tarantino se destaca por sua originalidade, ironia e capacidade de desconcertar.

terça-feira, outubro 06, 2009

Deixa ela entrar


Desde Minha vida de cachorro (1986), de Lasse Hallström, o cinema sueco não renovava tanto. Desde que o menino Ingemar entalou o pênis numa garrafa e ficou orfão não víamos outro menino sueco passar por peripécias tão angustiantes. Agora é a vez de Oskar, menino perseguido por colegas da escola que ganha uma nova vizinha no prédio onde mora. Falo do filme Deixa ela entrar, de Tomas Alfredson.

Mas como assim? Renovar é algo difícil hoje em dia. E como falar em renovação num filme com uma profusão de citações, referências e intertextos? Onde está a renovação se cada cena de Deixa ela entrar nos remete a Martin (1978, de George Romero) e a Near Dark (Quando chega a escuridão, 1987, de Kathryn Bigelow), para citar apenas dois? Tudo bem, então. Deixa ela entrar (2008) não renova nada, apenas impressiona. E como.

Para começar, é impressionante a musicalidade deste idioma, o sueco, o modo como ele reverbera em nossos tímpanos já cansados de tanto português e inglês. Passar duas horas ouvindo sueco é algo definitivamente impressionante (e renovador).

Em segundo lugar, em que filme um ser humano é pendurado de ponta cabeça numa árvore e tem a jugular cortada como um porco e o sangue coletado num frasco com a ajuda de um funil? Se isso não é renovador, então pelo menos é impressionante.

Em terceiro lugar, que filme é vendido como terror, mas no fundo tem como tema a amizade ou o amor como queiram? Sem falar nos temas básicos de filmes de vampiros: dependência, instinto, imortalidade.

Fome de viver é o que não falta para Eli (Lina Leandersson), a nova inquilina do prédio de Oskar (Kare Hedebrant). O guri é filho de pais separados e mora com a mãe. Na escola, é maltratado e humilhado por um trio de colegas. Em vez de revidar, Oskar sofre enxovalhos e se cala. Em linha reta continua sua trajetória até que conhece Eli, e seu mundo vira ao avesso. Poderoso vínculo de amizade os une, que evolui para um namoro impúbere e puro.
E em que consiste uma amizade senão em aceitar o amigo como ele é? Em que consiste um namoro senão estar sempre presente para o que der e vier?

A primordial qualidade de Deixa ela entrar é contar uma história de modo simples e eficiente. Terror? Depende do ponto de vista. Para mim, é uma bela história de amor. E de como o amor tem um ciclo de ápice e extinção. Para se renovar outra vez.